ARTIGO DA PROFª GRAÇA RAMOS

RESENHA DE GRAÇA RAMOS
Graça Ramos é doutora em história da arte e mestre em literatura brasileira. Publicada na revista RED (Revista de Ensaios Digitais) em 28/11/2018)
Graça Ramos é doutora em história da arte e mestre em literatura brasileira. Publicada na revista RED (Revista de Ensaios Digitais) em 28/11/2018)
O lançamento de Falando com estranhos - o estrangeiro
e iteratura brasileira, organizado por Stefania Chiarelli e Godofredo de
Oliveira Neto, chega em boa hora para ampliar percepções e propor novas
discussões sobre o tema. As análises contemplam largo arco histórico, desde
narrativas que mostram primeiras visões do estrangeiro no período colonial até
romances contemporâneos publicados na segunda década deste século.
A coletânea traz 17 autores que, no conjunto,
articulam espécie de historiografia crítica sobre como a ficção brasileira tem
abordado diferenças de pertencimento, movimentos de deslocamentos e
experiências de reterritorializações. Lançado pela editora 7Letras, o volume
aglutina os textos em cinco eixos: "cartografias, globalização"; "tradição,
herança e filiação"; "história, memória e narração";
"estranhos, estrangeiros, viajantes"; "ficção", que dão
conta das diferentes formas estéticas presentes no recorte que efetuaram da
literatura brasileira.Os organizadores convocaram os autores a partir de uma
imagem icônica: a das fotografias encontradas em passaportes e vistos não de
turistas, mas de pessoas que partem em busca de outros espaços de
sobre-existência. Instantâneos normalmente tensos, registros da ambivalente
condição de migrante, a meio caminho entre o antes e o depois, cindido entre
origem e destino, flutuando entre a expressão nativa e a adquirida.Estão presentes 14 ensaios, assinados por Silviano
Santiago, Nelson H. Vieira, João Roberto Tonani do Patrocínio, Eurídice
Figueiredo, Masé Lemos, Muna Omran, Maria Zilda Ferriera Cury, Alcmeno Bastos,
Ana Maria Vieira Silva, Beatriz Resende, Ângela Maria Dias, Claudete Daflon,
Giovanna Dealtry e a própria Chiarelli. Os organizadores selecionaram ainda
duas narrativas ficcionais, assinadas, respectivamente, por Daniela Versiani e
Oliveira Neto, que problematizam o tema e estabelecem diálogo entre a crítica
ensaística e a ficção que sabe ser crítica. E, em classificação indefinida,
entre o ensaio e a digressão autobiográfica de inspiração psicanalítica,
apresentam texto de Paloma Vital.Chiarelli, professora de literatura brasileira
na Universidade Federal Fluminense (UFF), e Oliveira Neto, professor na mesma
disciplina na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), argumentam, na
apresentação do livro, que "a reflexão sobre o tema é vital nas
circunstâncias em que explodem em todos os cantos do planeta demonstrações de
xenofobia e intolerância, esses graves impasses do mundo contemporâneo".
Valorizam também o caráter de solidariedade, ao
recortarem do conjunto da literatura brasileira, narrativas em que estrangeiros
assumem importância no desenrolar dos enredos.Mais que a oportunidade política
do tema, para além da análise estética de tantos textos que tematizam a
alteridade e o viver entremeio a culturas distintas, a coletânea coloca em
evidência - e os organizadores apenas comentaram com rápidas pinceladas tal
aspecto na apresentação - o compromisso político dos críticos. Referem-se
claramente ao legado teórico do acadêmico indo-britânico, Homi K. Bhabha,
professor na Universidade de Harvard, que, em O local da cultura, atribui ao
crítico a função de "assumir a responsabilidade pelos passados não ditos e
assombrar o presente histórico".Seguindo essa linha, os textos colocam em evidência o
descentrado, o ambivalente, zonas fronteiriças de um existir híbrido que teima
em questionar mundos em que ainda habitam inteirezas políticas e estéticas.
Constroem importante diálogo teórico, em que referências bibliográficas se
repetem e muitos dos títulos dos ensaios abusam da prolixidade, como se
duvidassem da capacidade do leitor de apreender o tema apenas pela sugestão que
deve ser vetor. Em comum, todos os autores são professores, o que evidencia a
importância que o tema vem ganhando nas discussões acadêmicas.Veja a
capaEscolhido para abrir a coletânea com "Deslocamentos reais e paisagens
imaginárias - o cosmopolita pobre", Silviano Santiago assina texto de
forte impacto. Apresenta autoral decálogo, que configura espécie de guia
metodológico para a discussão do tema.A partir da ressignificação do vocábulo
"diáspora", o autor reflete sobre migrações contemporâneas e sua
representação artística, em especial nas Américas. Naquele que é o tópico mais
rico do ensaio, Santiago, em diálogo com o poeta e ensaísta mexicano Octavio
Paz, recupera a figurado pachuco, termo alusivo aos mexicanos-americanos
pobres.
A partir dessa imagem, propõe discussões sobre a identidade
latino-americana desde o pós-guerra e sugere que o cosmopolita pobre, "em
qualquer metrópole do mundo ocidental onde se respira abundância", sempre
será um intruso a abrir feridas.Professor de estudos portugueses e brasileiros
na Brown University, Nelson H. Vieira analisa com rigor perdas emocionais e
culturais vivenciadas pelos protagonistas de romances que tratam da emigração
para fora do Brasil. Atém-se, em especial, a Vidas provisórias, de Edney
Silvestre, ambientado em New York, e a O único final feliz de uma história de
amor é um acidente, de João Paulo Cuenca, vivenciado em Tóquio. Com o título
"Fora do Brasil - globalização e deslocamento na literatura brasileira:
migração transnacional e luto cultural", o ensaio alerta que relatos sobre
esse tipo de deslocamento são recentes em nossa literatura, emergindo somente a
partir da década de 1990. E destaca "a necessidade de descobrir e empregar
novas coordenadas transnacionais para poder lidar com esta era de migração para
fora do Brasil". Reivindicação para a qual Silviano Santiago fornece
alguns caminhos teóricos em seu decálogo.O romance de Cuenca também é objeto da análise de João
Roberto Tonani do Patrocínio, em "Do monstro interplanetário à tradição da
poesia tanka, Tóquio pelo olhar estrangeiro de João Paulo Cuenca: uma leitura
da coleção Amores Expressos".Em longa e lúcida análise sobre o papel das viagens de
formação na cultura brasileira, ele aproxima os roteiros da coleção ao turismo
de massa, mas ressalta não ter identificado nas obras produzidas a partir
dessas viagens uma hierarquia entre o nacional e o cosmopolita, como ocorria no
passado.
Nessa descentralização globalizada, Paloma Vital, argentina-brasileira,
recupera sua chegada, quando criança, ao Rio de Janeiro - inclusive com foto da
infância -, para discutir em "E a origem sempre se perde" ideias de
nacionalismo e a obsessão pela origem. Em diálogo com autores dos dois países,
como Silviano Santiago, Bioy Casares, Allan Pauls e Fabrício Corsaletti, a
autora recorda a natureza móvel dos mapas e das identidades, as inadequações
vividas por quem se desloca, para propor uma direção de cura ancorada na
escrita do desejo.Em "As paisagens sonoras de Samuel Rawet",
Chiarelli brinda o leitor com diferenciada análise da obra do
judeu-polonês-brasileiro. Aponta a importância dos barulhos e ruídos na prosa
do escritor, dono de dicção seca, quase áspera, que tantas vezes tematizou o
silêncio e a incomunicabilidade.A questão judaica também é o tema de Eurídice
Figueiredo, em "A narrativa de filiação de escritores judeus
brasileiros", quando analisa livros de contemporâneos brasileiros dessa
ascendência para concluir que ao embaralharem ficção e não-ficção esses
romances deixam o leitor em situação instável. Já Muna Omran produz saborosa
narrativa intitulada "Uma das mil histórias do Sahrazado Baiano - A
descoberta da América pelos turcos", sobre como a obra de Jorge Amado
reforça estereótipos orientalistas.
A ensaísta aproxima-se da dicção de uma
Sherazad para também falar da confusão que brasileiros ainda fazem com as
denominações de turco, árabe e libanês. Do feminino migrante ocupa-se Maria
Zilda Ferreira Cury, em "Imigração no feminino: Amrik, de Ana
Miranda". E Masé Lemos debruça-se sobre Lavoura arcaica, de Raduan Nassar,
para expor suas origens orientalistas."Os agudás de Um defeito de cor e de A casa da
água: africanos e afro-brasileiros, estrangeiros na África", de Ana Maria
Vieira Silva, analisa os avanços e impasses de protagonistas dos dois romances,
de autoria respectivamente de Ana Maria Gonçalves e Antonio Olinto, que narram
a reterritorialização de brasileiros que deixaram o país e retornaram ao seu
mundo original.Em longa e minuciosa pesquisa, Alcmeno Bastos esmiúça
a colonização germânica no Sul do Brasil em "A ferro e fogo, de Josué
Guimarães: a saga dos primeiros colonos alemães no Rio Grande do Sul e seu
alheamento da ambiência sociocultural brasileira". Quase um contraponto
temático, Angela Maria Dias apresenta "A um passo de Elvira Vigna: uma
alegoria distópica da mestiçagem brasileira".Claudete Daflon demonstra
como o médico indigenista judeu-brasileiro Noel Nutels configurou-se como
"matéria literária".No ensaio "Em meiga argila brasileira: o
imigrante- cientista", a autora demonstra que ao se deslocar
permanentemente pelo Brasil, Nutels, objeto de poemas e romances biografados,
estabeleceu peculiar forma de pertencimento. O oposto do que se depreende da
posição do escritor Lima Barreto, que faz do não - pertencimento "tema e
impulso" de sua obra, conforme analisa Beatriz Resende, em "Lima
Barreto e seus estrangeiros".
A ensaísta demonstra que o autor de Triste
fim de Policarpo Quaresma aproxima-se do olhar e das dificuldades do
estrangeiro ao narrar as agruras provocadas pela exclusão econômica,
internamentos em clínicas e perda da cidadania pela aposentadoria. Sua análise
leva o leitor a situar os excluídos de um país na condição de estrangeiros.Uma leitura política aproximada também engendra
Giovanna Dealtry, em "Alma-palavra: voz e pertencimento indígena em
Habitante irreal, de Paulo Scott". A partir de um dos mais belos contos de
Clarice Lispector, "A menor mulher do mundo", que narra o encontro
entre Pequena-flor e o explorador francês Marcel Petre, a ensaísta analisa a
abordagem dada aos indígenas na literatura nacional, tornados estrangeiros na
própria terra. E demonstra como o protagonista do romance de Scott busca
reparar a morte da mãe, índia guarani, e, ao mesmo tempo, se reconectar com a
cultura dos seus antepassados.A temática indígena domina também o conto de Oliveira
Neto, em "Outro", que narra desencontro violento entre um indígena,
formado em biologia e professor, e descendentes de imigrantes em Santa
Catarina. Eles disputam a posse da terra, cada um intitulando ao outro de
estrangeiro. Aqui, a nota de distinção se dá para a estrutura do texto, que se
assemelha aos recursos do jornalismo literário, modo de investigar rarefeito
hoje nas coberturas do cotidiano, em especial quando aborda migrações.Naquele que em termos políticos talvez seja o texto
mais atualizado, a ficcionista e professora de teoria literária da Pontifícia
Universidade Católica (PUC-Rio), Daniela Versiani, traz para a coletânea, sob a
forma ficcional de uma carta a amigos, o tema mais premente hoje nas relações
internacionais, o drama dos refugiados, a sua invisibilidade e o precário
acolhimento que recebem. Lança mão de alusões e elipses, sem se referir
diretamente ao tema, apenas apropriando-se poeticamente de imagens que evocam o
flagelo de migrações recentes."Em debaixo da janela", a narradora, que
vive "o tempo de espalhar pedras e rasgar tecidos", provoca o leitor
desejando-lhe que se sinta um refugiado: "perdido, confuso e sem
resposta".Coletâneas, com frequência, apresentam irregularidades. Costumam
somar textos mais densos - que enfatizam proposições teóricas, apontam
novidades ou primam pela elegância ficcional - a outros mais circunscritos.
No caso de Falando com estranhos - o estrangeiro e a
literatura brasileira a soma dos 17 textos articula um corpo teórico e de
estilos que amplia as noções de ser estrangeiro. Ao término da leitura de suas
261 páginas o leitor poderá perceber, venha de onde vier, que somos todos seres
entre-mundos.
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